Artigo/Aspiração Antissociológica

A ASPIRAÇÃO ANTISSOCIOLÓGICA DO COMBATE AO COVID-19: O ISOLAMENTO SOCIAL

Uma característica muito forte dos seres humanos é a de sermos sociais, e isso impõe a necessidade de vivermos em interação e contato permanentes para mantermos e alimentarmos trocas que nos permitem aprendizagem e sinergia. Por isso, segundo Simmel (1858-1918), qualquer interação entre seres humanos pode ser considerada uma forma de socialização, logo, uma possibilidade de aprendizagem.

 O Covid-19 tende a se favorecer dessa qualidade sociológica de nossa existência, em que o ritmo de determinados contatos e interações sociais dá a dimensão mais precisa da vida em centros urbanos – e, por que não dizer, em certas comunidades rurais. A aspiração antissociológica de combate ao Covid-19 nos projetou para um cenário de isolamento social, que fez colidir duas velocidades em que o tempo se manifesta: a ligeireza e a vagareza.

A ligeireza é aquela velocidade do tempo que, vindo da rua, invade a casa, define horários para não se desperdiçar o tempo. Passa tão rápido a ponto de não conseguirmos dar conta das obrigações diárias. Vagareza tem outro ritmo, seria quase uma preguiça. Não qualquer preguiça, mas aquela explicitada por Ariano Suassuna na sua peça A farsa da boa preguiça, em que distingue: “Há uma preguiça com asas, outra com chifres e rabo. Há uma preguiça de Deus e outra preguiça do Diabo” (2012:13). Embora necessário, o isolamento social põe essas duas velocidades do tempo em rota de colisão. Não sabemos lidar com a vagareza, e ela termina absorvida pela ligeireza, que impõe os cuidados diários com a casa, as tarefas do trabalho remoto, a educação dos menores, a observação dos idosos, o isolamento interior dos jovens e adolescentes enclausurados em seus quartos e celulares.

Essa aspiração antissociológica de combate ao Covid-19 tem agudizado as experiências de desigualdade social, trazendo à tona as imensas dificuldades de lidar com a pandemia e os efeitos da estratificação social em um mesmo momento histórico. É, pois, nas facetas do confinamento que essa estratificação recebe recortes de gênero e geracionais. Basta a leitura de jornais para se quantificar o aumento da violência doméstica contra mulheres e idosos. Não bastasse esse cenário, registram-se ainda a disseminação de informações falsas e o perigo de que o isolamento reduza as fontes de informação de boa parte da população aos vídeos e notícias “fake”.

O mundo pós-Covid-19 tem se descortinado em dois tipos de reflexão. Uma é aquela de teor mais otimista, como no poema Esperanza, do cubano Alexis Valdés:  Y no tendremos envidia pues todos habrán sufrido.Y no tendremos desidia. Seremos más compasivos.

 E a outra é mais realista ou, quiçá, pessimista, prevendo um mundo ainda mais egoísta e mergulhado na ciranda do consumo a ser dançada, de mão dadas, por muitas as pessoas, nos grandes salões dos shopping centers.

 O isolamento social tem nos possibilitado repensar as nossas interações e, sobretudo, encarar a face monstruosa desse fenômeno social. Os frutos da nova socialização podem representar a passagem de uma sociedade em que a economia valha mais que a vida, para aquela em que a vida seja um valor universal. No momento, sabemos que os ataques aos direitos sociais continuam sem trégua. Caberá, portanto, aos trabalhadores se manterem atentos, organizados e respondendo a esses ataques. No entanto, o que irá acontecer, só a história nos dirá.

Tarcísio Augusto Alves da Silva é doutor em Sociologia, prof. do Dep. de Ciências Sociais da UFRPE. Diretor da Aduferpe – Associação de Docentes da UFRPE.

Artigo anteriorEnem adiado: vitória dos estudantes e da sociedade
Próximo artigoPobreza e violência na quarentena